O fibrinogênio é uma proteína do sangue,fundamental na fase
final de coagulação sanguínea.
A hipofibrinogenemia é uma doença
hemorrágica rara,em que ocorre uma deficiência quantitativa na
produção do fibrinogênio.
Os sintomas variam de acordo com
a quantidade de fibrinogênio produzido pelo organismo e sua
capacidade de funcionamento.
Pacientes diagnosticados com essa
condição que necessitem de cirurgia odontológica demandam de
planejamento multidisciplinar.
O presente estudo teve por objetivo
relatar a conduta pré,trans e pós-operatória de um paciente portador
de hipofibrinogenemia,com necessidade de cirurgia odontológica
para exodontia de terceiros molares.
O procedimento foi planejado
pelo cirurgião-dentista em conjunto com o hematologista,em que os devidos cuidados foram adotados para segurança e
conforto do paciente.
A cirurgia foi realizada sem intercorrências
e com sangramento compatível a não portadores dessa alteração.
Palavras-chaves:
Coagulação;
Odontologia;
Fibrinogênio.
O fibrinogênio,também conhecido como
fator I,é uma proteína do sangue,fundamental na
fase final da coagulação sanguínea2,3,4.
Constitui-se
de uma molécula grande,formada por duas metades
idênticas,cada uma composta por três cadeias
de proteínas (alfa,beta e gama).
Tem papel na
formação de coágulos por meio da conversão de
fibrina,sendo importante na hemostasia primária
por contribuir para a agregação plaquetária pela
ligação da glicoproteína IIb/IIIa na superfície de
plaquetas ativadas.
A hipofibrinogenemia é uma doença em
que ocorre deficiência quantitativa na produção do
fibrinogênio,e seus níveis sanguíneos se encontram
em quantidades menores de 100 mg/dl de sangue,
fazendo com que a capacidade de coagulação
sanguínea do paciente fique comprometida,podendo levar a sangramentos pequenos ou até
mesmo hemorragias severas.
Concebida uma doença rara,é considerada
menos grave que as demais alterações na formação
do fibrinogênio,como a afibrinogenemia,caracterizada pela não produção de fibrinogênio,e
a desfibrinogenemia,uma alteração qualitativa do
fibrinigênio,que é a mais frequente das alterações
e resulta da produção de fibrinogênio anormal.
O paciente portador de hipofibrinogenemia
pode permanecer assintomático por longos
períodos1
ou apresentar desde sangramentos
pequenos até hemorragias graves,de origem
espontânea ou,mais comumente,relacionada a
traumas ou intervenções cirúrgicas evasivas.
Os
sintomas irão variar de acordo com a quantidade
de fibrinogênio produzido pelo organismo e sua
capacidade de funcionamento.
Em distúrbios
mais severos,pode haver um primeiro episódio
hemorrágico já ao nascimento,por hemorragia no
cordão umbilical ou hemorragia intracraniana
e nas mucosas no período neonatal.
Há relatos
de menorragia,epistaxe e hemorragia na
cavidade oral,e,embora menos frequentemente,
hemorragia do trato urinário e gastrointestinal.
Existem também casos de trombose,ainda não
esclarecidos, visto que não são relacionados
com a terapia de reposição do fibrinogênio.
As
mulheres portadoras apresentam maior risco de
aborto, provavelmente devido ao importante papel
do fibrinogênio na implantação do feto.
Esses
episódios são mais comuns na afibrinogenemia ou nos casos de hipofibrinogenemia,em que a
INTRODUÇÃO
Paciente F.P.,18 anos,leucoderma,compareceu ao Centro de Atenção e Pesquisa de
Anomalias Crâniofaciais do Hospital Universitário
do Oeste do Paraná – CEAPAC/HUOP, indicado
por um ortodontista para remoção dos terceiros
molares.
Na anamnese,o paciente relatou ser
portador de fissura labiopalatina já corrigida e
hipofibrogenemia. Esta última teve seu diagnóstico
ao acaso já nos primeiros meses de vida do paciente,quando este realizou exames laboratoriais prévios
à realização da cirurgia de correção da fissura
labiopalatina.
Em relação ao distúrbio de coagulação,nunca houve outras manifestações da alteração,bem
como não se pode estabelecer caráter hereditário,pois o paciente convive com a família adotiva e não
conhece nenhum familiar consanguíneo.
Ao exame físico e radiográfico,confirmou se a presença de fissura labiopalatina completa
transforame incisivo do lado esquerdo,já corrigida.
Os terceiros molares superiores apresentavam-se
irrompidos, o inferior esquerdo classe II posição
C,segundo a classificação de Pell e Gregory10,e
RELATO DE CASO
concentração de fibrinogênio se apresenta inferior
a 50 mg/dl.
Manifestações severas de hemorragia,decorrentes da hipofibrinogenemia,são
raras,fazendo com que a doença permaneça
subdiagnosticada.
É importante a investigação
da história pregressa pessoal e familiar dos
quadros clínicos,laboratoriais e sinais e sintomas
que indiquem a presença de tal coagulopatia,principalmente nos pacientes que serão submetidos
a procedimentos invasivos,tais como cirurgias
odontológicas.
Depois de realizado o diagnóstico,é importante proceder ao tratamento da
coagulopatia,basicamente com reposição do fator
de coagulação deficiente.
As opções de tratamento
têm evoluído rapidamente,nos últimos anos,proporcionando maior segurança transfusional
aos pacientes,otimizando os resultados obtidos
e, consequentemente,melhorando a qualidade de
vida do paciente.
O presente estudo tem como objetivo
relatar o manejo pré, trans e pós-operatório de
um paciente portador de hipofibrinogenemia com
necessidade de exodontia de terceiros molares.
Considerado uma das proteínas
predominantes no plasma,o fibrinogênio é uma
glicoproteína sintetizada no fígado, precursora do
coágulo de fibrina.
Na eletroforese,o fibrinogênio
se apresenta como uma banda situada entre as
globulinas beta e gama.
É o responsável pela
formação do coágulo de fibrina,quando ativado pela
trombina e,após isso,é praticamente removido no
processo de coagulação e não é visto no soro (apenas
no plasma com anticoagulantes).
Além dessas
propriedades,o fibrinogênio é uma das proteínas
encontradas,marcadamente elevadas durante a
fase aguda de processos inflamatórios.
A hipofibrinogenemia assim como as
demais alterações congênitas do fibrinogênio,tem caráter hereditário autossômico recessivo.
DISCUSSÁO
o inferior direito em posição horizontal,segundo
classificação de Winter11
Radiografia panorâmica evidenciando
fissura labiopalatal e posição dos terceiros
molares
Fonte: Paciente atendido pelo Centro de Atenção
e Pesquisa de Anomalias Craniofaciais do Hospital
Universitário do Oeste do Paraná – CEAPAC/HUOP.
Alvéolo do elemento 48 após exodontia,evidenciando sangramento comparável a não
portadores da alteração sanguínea.
Fonte: Paciente atendido pelo Centro de Atenção
e Pesquisa de Anomalias Craniofaciais do Hospital
Universitário do Oeste do Paraná – CEAPAC/HUOP.
Devido ao relato da existência de
coagulopatia,foram solicitados exames
laboratoriais ao paciente:tempo de ativação da
protrombina (TAP) e tempo de ativação parcial da
tromboplastina (KPTT) que mostraram resultado
como indeterminável,visto que tais exames são
pouco sensíveis na determinação da quantidade de
fibrinogênio funcional.
Após orientação do hematologista
responsável pelo caso,o planejamento cirúrgico
baseou-se em administrar concentrado de
fibrinogênio previamente ao procedimento.
O
paciente recebeu duas bolsas de concentrado de
fibrinogênio duas horas antes da cirurgia e realizou
novos exames laboratoriais de TAP e KPTT,os
quais se encontraram dentro dos padrões normais
de coagulação.
A cirurgia foi realizada,e o transoperatório
decorreu sem nenhuma intercorrência.
Terminado o procedimento cirúrgico,procedeu -se à hemostasia local somente com compressão
local utilizando-se gaze estéril embebida em soro
fisiológico por 5 minutos.
Certificada a coagulação
e ausência de sangramento,o paciente foi liberado,com instruções de cuidado pós-operatório.
O paciente retornou no segundo dia
pós-operatório,para reavaliação,evoluindo,adequadamente,como em pacientes não portadores
da alteração.
No período de sete dias de pós-operatório,foi realizado remoção de sutura,observando-se
evolução dentro dos aspectos normais.
O paciente foi avaliado posteriormente,no
período de 60 dias pós-operatório,em que foi notado
reparo completo e nenhuma queixa,recebendo alta.
Embora,no caso não se pode estabelecer vínculo
hereditário, sabe-se que ela ocorre em heterozigose
de um dos genes que apresenta a mutação genética,localizado no cromossomo quatro.
Esse gene
pode ser qualquer um dos três,que codificam as
três cadeias polipeptídicas do fibrinogênio e irão
afetar a síntese, união,processamento intracelular,estabilidade ou secreção de fibrinogênio.
Os pacientes portadores da
hipofibrinogenemia apresentam uma
sintomatologia clínica variável,dependendo do
quanto a doença está comprometendo a produção
do fibrinogênio,o paciente pode permanecer
assintomático por longos períodos, como o
relatado pelo paciente do caso.
Em geral,as
manifestações começam quando a concentração
de fibrinogênio cai abaixo de 50 mg/dl .
Os
episódios hemorrágicos podem ser de intensidade
leve a grave,sendo,na maioria das vazes,pós-traumáticos.
Embora não relatadas no caso,
as hemorragias espontâneas mais frequentes
costumam ser:sangramentos gengivais, epistaxes
e,em mulheres,menorragia,Hemorragia do trato
urinário e gastrointestinal é menos frequente,e
hemorragia intracraniana é rara,entretanto,foram
relatadas.
Menos comumente pode ocorrer
sangramento de cordão umbilical,ou então,hemorragia nas mucosas no período neonatal já como uma das primeiras manifestações e deve
chamar a atenção para o diagnóstico da doença,ou
mesmo,de outros distúrbios de coagulação,como
a deficiência de fator XIII.
Mulheres com hipofibrinogenemia podem
apresentar maior risco de aborto,devido ao papel
do fibrinogênio na implantação do feto.
Decorrente
disso,pode ser necessário fazer profilaxia com
concentrado de fibrinogênio durante a gravidez.
Apesar de a maioria dos pacientes portadores de
alterações no fibrinogênio ou outras coagulopatias
estarem cientes de suas condições,o diagnóstico
diferencial e atento das coagulopatias hereditárias
requer avaliação da história pregressa pessoal e
familiar e dos achados clínicos e laboratoriais.
Sendo assim,quando o paciente apresentar
necessidade de se submeter a procedimentos
cirúrgicos, como no caso descrito,é fundamental
investigar a presença de doenças sistêmicas já
diagnosticadas,bem como sinais e sintomas
indicando qualquer alteração subdiagnosticada.
Se
o paciente desconhece sua patologia,mas apresenta
sintomatologia as indicando,é imprescindível que o profissional seja capaz de diagnosticá-la e proceda
de maneira adequada,em cada caso.
Quando a anamnese e/ou o exame físico
indicarem alterações na coagulação sanguínea,os exames laboratoriais básicos e rotineiramente
solicitados são o TAP e o KPTT.
O tempo de
protrombina pode apresentar-se alargado pelo
uso de medicamentos,hepatopatias ou deficiência
de fator VII,principalmente,mas o TAP é pouco
sensível à deficiência de fibrinogênio. Entretanto,
na hipofibrinogenemia grave (abaixo de 50 mg/dl
de fibrinogênio) e na afibrinogenemia, o TAP e o
KPTT encontram-se aumentados e incoaguláveis, respectivamente.
O KPTT avalia diretamente o fibrinogênio
funcional,sendo mais indicado para investigar
defeitos na molécula do fibrinogênio.
Pode estar
prolongado na presença de heparina,em altas
concentrações de imunoglobulinas (por exemplo,na macroglobulinemia de Waldenstrom),nas
disfibrinogenemias, na hipofibrinogenemia,estando incoagulável na afibrinogenemia.
O KPTT
para uso clínico deve ter concentração de trombina
de aproximadamente 4 U/ml para que se obtenha
um tempo normal de cerca de 20 segundos.
Assim,o teste terá sensibilidade suficiente para detectar
anormalidades leves do fibrinogênio.
Para uma classificação mais precisa e
facilitada,é valido realizar o método de Clauss,que
determina a quantidade de fibrinogênio funcional.
Em presença de um excesso de trombina,o tempo
de coagulação de um plasma diluído é inversamente
proporcional à concentração de fibrinogênio
plasmático.
O tempo de coagulação obtido é
comparado posteriormente com uma preparação
de fibrinogênio padronizada.
Nos casos em que o paciente já conhece
o diagnóstico de sua condição e vem recebendo
tratamento,é importante que haja discussão do
caso com o médico hematologista responsável, para se definir o esquema de tratamento,tendo-se
em vista o tipo de procedimento e a disponibilidade
de recurso terapêutico1
.
É fundamental certificar-se
do diagnóstico da coagulopatia e de sua condição
atual,sempre verificada por exames recentes,e
providenciar produto adequado e suficiente para a
terapia de reposição durante todo o período pré,trans e pós-operatório.
O tratamento das coagulopatias visa
proporcionar a reposição dos fatores da coagulação
que se encontram deficientes.
Os métodos
de reposição têm evoluído rapidamente,nos
últimos anos,proporcionando maior segurança.
Atualmente o tratamento da
hipofibrinogenemia pode ser feito por meio de
componentes obtidos do plasma sanguíneo, como
o concentrado de fibrinogênio,o crioprecipitado,ou mesmo do plasma fresco congelado (PFC),sendo que este último vem sendo cada vez menos
utilizado.
O crioprecipitado (CRIO) contém
glicoproteínas de alto peso molecular como de
fator VIII,fator von Willebrand, fibrinogênio
e fator XIII.
Está indicado no tratamento de
hipofibrinogenemia congênita ou adquirida (<
100 mg/dl),como forma de repor fibrinogênio
em pacientes com presença ou risco evidente de
hemorragia,quando não se dispuser do concentrado
de fibrinogênio industrial.
Quando administrado,
cada unidade aumenta o fibrinogênio em 5 a 10
mg/dl em um adulto de 70 Kg,na ausência de
grandes sangramentos ou de consumo excessivo
de fibrinogênio.
O nível hemostático é de 100 mg/dl.
O cálculo da quantidade necessária de bolsas
para correção de hipofibrinogenemia depende da
natureza do episódio de sangramento e da gravidade
da deficiência inicial.
Uma forma prática para tratar
os pacientes com hipofibrinogenemia é o cálculo
de 1 a 1,5 bolsas de crioprecipitado para cada 10
kg de peso do paciente,com a intenção de atingir
nível de fibrinogênio hemostático de 100 mg/dl,reavaliando a cada 3 a 4 dias.
É importante lembrar que o crioprecipitado
contém anticorpos ABO,portanto,sempre que
possível,utilizar componente ABO-compatível.
Mas,o maior problema enfrentado é que esses
derivados do plasma sanguíneo são passíveis de
transmitir doenças causadas por agentes infecciosos,tais como Hepatite B, Hepatite C,Chagas,Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida (SIDA),etc.
Para minimizar esses transtornos,além de
melhor triagem clínica e sorológica dos doadores,foram desenvolvidos métodos para inativação de
agentes infecciosos potencialmente transmissíveis
pelos concentrados de fator, expondo,assim,o
paciente a menor risco de adquirir tais doenças.
Esses métodos de inativação empregam elementos
físico-químicos,tais como calor para destruição
do vírus e solvente-detergente para dissolução do
envelope lipídico viral e posterior destruição do
vírus.
O crioprecipitado e PFC,contudo,são
cada dia menos utilizados,e quando selecionada
a decisão,esta deve ser compartilhada pela equipe
médica com o paciente ou seus familiares,devendo
todas as dúvidas ser esclarecidas.
A utilização do concentrado de fibrinogênio
foi descrita nas diretrizes de tratamento de
coagulopatias do Reino Unido; recentemente vem
sendo melhor estudada considerando,hoje em dia,a melhor alternativa a ser utilizada.
Conforme o
protocolo adotado no presente caso,o emprego do
concentrado de fibrinogênio possibilita transfundir
somente o componente de que o paciente necessita.
O fibrinogênio,como os demais hemoderivados,é tratado por métodos de inativação viral,não
apresentando risco de contaminação.
Sua indicação é padronizada e baseada em
evidências científicas determinadas pela análise de
grupos de pacientes, nunca devendo ser empírica
ou baseada somente na experiência do profissional
médico envolvido.
Estudos indicam a terapia de
reposição antes da cirurgia como forma de reduzir a
hemorragia pós-operatória em 60% dos casos,pois
a meia-vida do fibrinogênio infundido é de 3 a 5
dias em adultos.
O médico do serviço de hemoterapia deve
analisar a indicação de transfusão,considerar as
formas disponíveis e verificar a melhor opção para
o caso,lembrando que,no Brasil,o Ministério da
Saúde é a instituição responsável pela compra e
distribuição dos hemoderivados para o tratamento
das coagulopatias hereditárias.
Outros cuidados devem ser tomados com os
portadores de hipofibrinogenemia,principalmente
relacionados à prescrição pós-cirúrgica:
contraindicada a prescrição de aspirina, butazona,diclofenaco e derivados,não fazer aplicações de
quaisquer medicamentos intramusculares,ou
puncionar veias profundas (jugulares ou femurais)
ou artérias, a não ser em situações de extrema
necessidade,com infusão prévia de fator.
Deve-se dar preferência aos medicamentos,derivados
da dipirona,acetaminofen ou paracetamol para
analgesia,ou em casos de dores mais intensas,derivados da morfina ou da codeína e,caso
haja necessidade de anti-inflamatório,optar pelo
ibuprofeno.
Os pacientes portadores de
hipofibrinogenemia podem ser submetidos a
qualquer procedimento cirúrgico odontológico;
basta apenas que se tomem os cuidados necessários.
O tratamento desses pacientes deve
ser planejado pelo cirurgião-dentista em conjunto
com o hematologista,visando maior segurança e
ao conforto ao paciente e à equipe profissional.
Assim,é imprescindível o cirurgião-dentista
ter conhecimento da patologia e de possíveis
complicações por ela apresentada.
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